a cumplicidade entre duas almas...

segunda-feira, janeiro 15, 2007

olhos de ver


foto: Rui Figueiredo




queria mostrar flocos de neve ao mundo. queria provar o quanto brilham na alma de um ser. mas no fundo era na corrida de trenó que ninguém o superava.
prateado, com o nome desenhado a letras encarnadas, verniz q.b., aerodinâmica de ponta, descia colinas em velocidade supersónica com a felicidade em seu regaço. longos prados brancos ornamentados em seus lados por tímidos mas brincalhões carvalhos verdecastanhos amparavam os sonhos dos que por ali assistiam.
com carinho revelava a graça do seu companheiro de aventura entre amigos convivas,

- Rosebud, com ele tenho o mundo a meus pés,

e o companheiro reluzia orgulhoso repousando na sua perna.
as colinas aguardavam todos os anos ilustre competidor. os mancebos das redondezas acorriam em massa quando o sentiam no local. lançavam desafios em fila tomando-lhe o gosto, acotovelando-se nos desejos de competir com o campeão, embora com o lúcido conhecimento do insucesso da missão, mas sorriam pois invencível o queriam. era merecida a fama e alegria geral.
Luís, paraplégico, mostrava ao mundo os flocos de neve a brilhar.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Sara, a menina dos nervosos miudinhos, da vida só conhecia o sol encoberto e o cheiro da maresia. a neve só tinha visto na primavera, quando as amendoeiras choram flores.
achava que tudo sempre fora mais fácil, quando a vida ainda se escrevia com as letras da canja e as grandes lutas passavam por vestir o bibe e descobrir a lata das bolachas.
as adições, subtracções, divisões e multiplicações eram feitas nas pontas dos dedos, nunca aprendeu verdadeiramente a fazer contas. à noite revolvia na flanela que lhe servia na perfeição aos seus desejos caprichosos de princesa imaginária.
logo em pequena o doutor avisou que teria olhinhos preguiçosos e que veria o mundo em tons de cinza, a partir desse dia decidiu ser gato. desistiu de tudo. cresceu enroscada junto à lareira onde está sempre calor e deixou de ser capaz de perceber tudo o resto. ás vezes sentava-se à janela a ver a chuva, que cai mesmo quando não há nuvens.
certo dia começou a pingar-lhe na testa a presença impertinente de um duende, lambareiro e delicado, que lhe presenteou com milhares de contas de todas as cores do arco-íris. disse-lhe que eram mágicas, que se as usasse convenientemente iria descobrir que afinal a única coisa que chove lá fora são estrelas à espera de oferecer um milagre à sua vida. desajeitada e magoada, descrente do seu miar, confiante no seu mundo acromático, ainda assim, resolveu descobrir tal segredo tão atrevido, ainda que para si aquelas fossem só bolinhas incolores. o seu passatempo favorito, sempre fora os quebra-cabeças, sobretudo os puzzles de 1500 peças. empurrou-as com o nariz, pô-las a rolar a sua volta, aninhou-as nas mãos, cheirou, lambeu, pô-las a saltar e mesmo assim continuava sem compreender o propósito das pedrinhas. da cama para o braseiro, a curiosidade felina não lhe permitia descurar do seu tesouro, carregava-o sempre consigo bem junto ao peito.
num dia aborrecida com tanta confusão, plantou-se à janela a ver a chuva cair. do outro lado do jardim, debaixo das gotas o duende sorria-lhe palavras que não entendia. pensou que se tivesse coragem de sair para o frio, talvez ele lhe pudesse explicar o enigma. foram necessárias muitas horas, até que se decidiu aventurar por entre as poças de água. lembrava-se o quanto os gatos não gostam de água e na sua cabeça vibrava a ameaça que sempre fora a curiosidade quem matou o gato. meia zonza e confusa, pronta para barafustar, engoliu em seco as palavras tontas quando o duende lhe pediu que deitasse fora as contas e mostrasse a palma da mão ao céu. disse-lhe ainda que o essencial é invisível aos olhos. nunca tinham sido as pedrinhas. sem pensar duas vezes abriu a mão que costuma viver aninhada ao peito, a esquerda, e bem no centro caiu-lhe um tímido floco de neve que brilhava sem parar. afinal a neve também queima, afinal a neve também pode ser quente, afinal ela também podia viver ali fora.
Sara, pela primeira vez conseguia ver todas as cores do mundo.

6:39 da tarde, fevereiro 04, 2007

 

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